O auge da administração científica se deu nas duas primeiras décadas do século XX. Sua característica mais marcante foi a inserção da racionalidade, caracterizada pela incorporação do processo de controle, análise e aprimoramento de fluxos de trabalho das organizações. A busca pela eficiência econômica e, posteriormente, pela qualidade dos trabalhos nortearam o desenvolvimento de um grande arcabouço teórico que denominamos de teorias da administração. É inegável que a adoção e aplicação do rigor científico das ciências exatas no então incipiente campo da Administração, que se consolidaria com as demandas ocasionadas pela segunda grande guerra mundial, trouxe muitos ganhos aos gestores e as organizações. Porém, a crescente valorização do componente humano pela sociedade e pelas organizações, a globalização, as inovações tecnológicas, entre outros acontecimentos, trouxeram novos desafios às organizações, evidenciando muitas inconsistências e inadequações de alguns preceitos das teorias clássicas da administração.
Temos presenciado questionamentos e o repensar de muitos dos cânones das teorias clássicas da administração. Algumas ações consideradas até então como verdadeiros sacrilégios a luz das teorias clássicas da administração passaram não só a ser aceitas, mas recomendadas como autênticas inovações e incorporadas ao conjunto das melhores práticas de gestão organizacional. Nesta carta, exploro um destes grandes cânones da Administração revistado, mais especificamente a transição do pensamento estruturado e racional, como única linha aceitável de conduta teórica e prática, para uma postura de aceitação e exaltação ao seu oposto, o improviso ou o não-planejado. Exploraremos esse conceito em diferentes áreas da gestão, evidenciando a sua pervasividade nas modernas teorias da administração.
Tomemos como exemplo o processo de tomada de decisão. A teoria clássica da administração motivou a geração de uma infinidade de algoritmos e modelos para tomada de decisão em ambientes complexos, sendo o Analytic Hierarchy Process (AHP) o mais tradicional e difundido destes. Tais modelos demandam a definição de critérios considerados importantes pelos gestores para a decisão, bem como a ponderação de pesos para eles. Estes modelos funcionam bem em tomadas de decisão em que todas as alternativas relevantes, suas consequências e probabilidades são conhecidas, e onde o futuro é certo (conceito de “small world” segundo a psicologia organizacional). Mas as decisões do ambiente de negócio atual são cada vez mais complexas, elas estão inseridas no contexto oposto, do “large world”. As decisões complexas sempre nos afrontam com informações relevantes que são de pouco conhecimento do grupo tomador de decisão ou que deve ser estimada a partir de amostras, e onde o futuro é incerto, violando as condições da teoria da decisão racional. Para as decisões complexas, em que há carência de informações, os psicólogos organizacionais observam que a adoção de heurísticas simples se mostra mais precisa, rápida e barata do que os métodos racionais. A heurística pode ser compreendida como atalhos mentais em função de se considerar menos critérios, reduzindo os esforços de coleta de dados, de ponderação de critérios, bem como de menor tempo de análise. Assim, obtém-se o conceito “less-is-more”, em que menos informações ou cálculos levam a julgamentos mais precisos e rápidos, atendendo mais adequadamente às demandas do “large world” contemporâneo.
Outra área da Administração que deslocou o eixo exclusivamente da racionalidade processual para uma postura mais criativa e proativa foi a administração de operações. A administração clássica trouxe o conceito e a prática de rotinas bem definidas e padronizadas, com regras e políticas muito bem definidas, sendo o desvio ou o desrespeito a estas caracterizado como uma grave falha do executor e do gestor. A busca por fluxos de trabalho mais flexíveis para o tratamento adequado do inesperado (ou exceções), que fazem parte da evolução dos sistemas abertos e das particularidades ao atendimento das necessidades de cada cliente (princípio da “customização”), demandaram mais autonomia e empoderamento dos operadores e gestores dos processos. Em função disso, o improviso organizacional, até então renegado e desconsiderado pelos teoristas organizacionais, passa a ser percebido como uma característica fundamental aos modernos processos de negócios. Os modernos Business Process Management System (BPMS) permitem aos gestores dos processos e até mesmo os seus operadores, se assim os gestores desejarem, tratarem as exceções que possam ocorrer nas instâncias ou transações do seu processo. Assim, o BPMS permite alterar o roteiro de trabalho pré-definido para aquela instância, permitindo esta percorrer um caminho diferente e alternativo, desde que devidamente justificado, com trilhas de auditoria ativadas e respeitando a todas as boas práticas de accountability, ou seja, autonomia com responsabilidade. Assim, temos que o improviso organizacional não só auxilia a resolver problemas do dia a dia, como permite ampliar a capacidade adaptativa das empresas frente a ambientes empresariais cada vez mais dinâmicos e em constante transformação. O improviso passa a ser compreendido como um dos principais recursos da Disorganization Theory, um importante instrumento de apoio à resiliência das empresas, uma capacidade central para as organizações contemporâneas.
O incentivo ao improviso organizacional e ao uso da heurística proporciona um ambiente que aumenta a capacidade inovativa das organizações, explorada pelas práticas mais recentes de gestão de inovação nas organizações. Neste novo contexto, o desafio de conceber novos produtos e serviços, ou mesmo novas versões destes, não é considerado como um desafio exclusivo de um centro de pesquisa e desenvolvimento (R&D), aliás inexistente na maioria das pequenas empresas criativas. Estratégias inovativas alternativas, como o employee-driven innovation ou o customer-driven innovation, valorizam e incentivam outras pessoas, além dos profissionais de R&D, a criarem, a proporem e a implementarem novos produtos, serviços ou mudanças. Além da tática criativa clássica da invenção, mais desafiadora intelectualmente e muito mais difícil e rara de ocorrer nas novas organizações, considera-se um amplo conjunto de heurísticas, mais simples de serem aplicadas por todos os funcionários. Passa a se valorizar e incentivar diversas ações heurísticas, como o frugalismo, a exaptação, a adaptação, a degradação, o aprimoramento, a ação de atribuir uso a recursos ociosos ou a resíduos produtivos (nonaptation spandrels), bem como a considerar o uso de resultante de “insucessos criativos” (nonaptation junk).
Nosso objetivo nesta primeira carta de abertura de Cartas aos Inovadores é evidenciar o campo de gestão organizacional como um ambiente bastante rico e prolífico para inserção de inovações. Explorando dois conceitos, o improviso e a heurística, observamos como alterações substanciais tem ocorrido na forma de pensar dos estudiosos em teorias organizacionais, bem como de agir dos modernos gestores. É fundamental pensarmos e discutirmos as inovações organizacionais de forma integrada, entrelaçando teoria e prática, da forma mais simples e direta possível, evidenciando o alinhamento entre as teorias organizacionais e as melhores práticas organizacionais.
Prof. Dr. José Osvaldo De Sordi
Universidade Federal de São Paulo
ORCID https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0001-8256-9396
Leitura adicional:
De Sordi, J. O., de Paulo, W. L., Jorge, C. F. B., Hashimoto, M., & Meireles, M. (2022). Exploring organisational improvisation through the experience of small business managers. Technology Analysis & Strategic Management. Advanced online publication. https://doi.org/10.1080/09537325.2022.2156335
Gigerenzer, G., & Gaissmaier, W. (2011). Heuristic Decision Making. Annual Review of Psychology, 62(1), 451–482.
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